#07. A demonização da raiva feminina na arte
Toda mulher furiosa já foi um monstro na história
Não sei se ainda é viral, mas, há um tempo, a “female rage” estava bombando no TikTok. Era comum vermos compilados de vídeos de mulheres expressando sua raiva em filmes e séries – Pearl, Dani de Midsommar, Annie de Hereditary, Rue de Euphoria e muitas outras. E que bom! Porque nem sempre foi assim.
Na arte, a raiva feminina foi retratada por séculos como feitiçaria, loucura, ou até mesmo algo animalesco. Sempre como um sentimento perigoso, como se mulheres estivessem fora de controle ao se expressarem.
Considero, pessoalmente, a história de Medusa um dos principais exemplos de demonização da raiva feminina. De acordo com a mitologia romana, Medusa era uma mulher mortal que foi violentada por Netuno dentro do templo de Minerva. A deusa encarou a situação como desrespeito e se enfureceu com Medusa, transformando-a em uma górgona, com cobras no lugar do cabelo e um olhar que pode petrificar quem a encarar.
Na arte, Medusa foi representada de formas que reforçavam a sua monstruosidade. Em Cabeça de Medusa (1597), Caravaggio a retrata em um instante de dor e terror, com o rosto retorcido em um grito desesperado.
Já Cellini, em sua escultura Perseu com a Cabeça de Medusa (1554), imortalizou o momento em que o herói segura sua cabeça decapitada. Segundo a mitologia, Perseu utilizou presentes dados pelos deuses e matou Medusa enquanto ela dormia. Do sangue dela, brotaram Pégaso, um cavalo alado, e Crisaor, um gigante.
Se Medusa foi transformada em um monstro, diversas mulheres da idade média foram acusadas de bruxaria e completamente demonizadas, muitas vezes por simples existência. A combinação de fatores como a Reforma Protestante e a publicação do Malleus Maleficarum transformou a caça às bruxas em um fenômeno da renascença. Pensadores influentes do período tornaram-se defensores fervorosos da perseguição à bruxaria, e os protestantes, por sua vez, perseguiam as bruxas com a mesma ou até maior crueldade que os católicos.
Antes vistas como mulheres com poderes mágicos, as bruxas passaram a ser retratadas como agentes do diabo, envolvidas em práticas terríveis: se deitavam com o demônio, voavam pela noite, castravam homens, destruíam plantações e matavam crianças. A arte, naturalmente, ajudou a solidificar essa imagem aterrorizante.
Francisco Goya retratou as bruxas em As Bruxas Voando (1789). Na obra, três figuras aparecem levitando e segurando um corpo desfalecido, enquanto dois homens aterrorizados presenciam. As cores escuras e as pinceladas dramáticas criam um clima de horror e misticismo.
Já Waterhouse, em O Círculo Mágico (1886), apresenta uma visão diferente. Em vez de uma figura demoníaca, sua bruxa é uma mulher concentrada, traçando um círculo mágico ao seu redor. Elementos como os corvos e o fogo reforçam a conexão com a feitiçaria, mas aqui ela não aparenta ser uma ameaça - e sim alguém que detém poder.
Mas afinal, quem estava passível de uma acusação de bruxaria?
Praticamente qualquer mulher. Solteiras, viúvas, sábias, assertivas, pobres, parteiras, curandeiras ou aquelas que tinham conhecimentos sobre ervas e remédios naturais eram alvos fáceis. Ou seja, ser mulher já era, por si só, um risco.
“Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recursiva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é um animal imperfeito, sempre decepciona e mente. [...] Portanto, a mulher perversa é, por natureza, mais propensa a hesitar na sua fé e, consequentemente, mais propensa a abjurar-lá – fenômeno que conforma a raiz da bruxaria.” - Malleus Maleficarum
Após um tempo, a perseguição às bruxas perdeu força, mas o controle sobre as mulheres não.
No século XIX, com o avanço da psicologia moderna, mulheres que expressavam raiva, desejo sexual ou qualquer outro comportamento “inadequado” passaram a ser diagnosticadas como doentes mentais. Aquelas que apresentavam surtos de pânico, ansiedade, irritabilidade, insônia, dores de cabeça, apatia e/ou perda de apetite eram diagnosticadas com histeria.
O termo ‘histeria’ deriva do grego hystera, que significa útero. Na Antiguidade, acreditava-se que mulheres com irritabilidade e surtos de pânico possuíam um distúrbio no útero, que se movia e se agitava. Esse distúrbio era atribuído à ausência de filhos, já que se acreditava que a mulher havia sido criada para ser mãe. Quando não cumpria esse papel, sua fisiologia gerava sintomas.
“Acreditava-se, na antiguidade, que a energia vital desse órgão se deslocava para outras regiões do corpo, causando os ataques. Já na Idade Média, eles eram considerados manifestação de bruxaria e não foram poucas as mulheres queimadas vivas por causa disso. A psiquiatria do século XIX, por sua vez, acreditava que a raiz devia estar em uma lesão orgânica, enquanto outros falavam em fingimento.” - diz a psicanalista Maria Teresa Lemos, da Escola de Psicanálise de Campinas.
Mais tarde, a partir dos estudos da histeria, médicos sugeriram que a estimulação genital poderia acalmar o útero ‘enlouquecido’ — e assim surgiu o vibrador.
A arte teve um papel crucial na construção da imagem da mulher histérica. Charcot, o neurologista pioneiro no estudo da histeria, utilizou a fotografia para documentar casos dessa condição no Hospital da Salpêtrière. A Iconografia Fotográfica da Salpêtrière é uma obra realizada pelos neurologistas Jean-Martin Charcot e Désiré-Magloire Bourneville, em colaboração com o fotógrafo e fisiologista Paul Regnard. A obra foi publicada em três volumes, nos anos de 1877, 1878 e 1879-1880, e apresenta 119 fotografias de pacientes diagnosticados com histeria, hístero-epilepsia e suas comorbidades.
Em continuidade aos estudos realizados por Charcot no Hospital da Salpêtrière, o pintor André Brouillet retratou, em Uma Aula Clínica no Salpêtrière (1887), uma demonstração clínica de histeria, com Charcot apresentando o caso da paciente Marie Wittman.
Somente mais tarde, com o avanço da psiquiatria, a histeria deixou de ser uma condição abstrata associada às mulheres e passou a ser classificada como neurose.
Da Medusa à histeria, a raiva feminina foi transformada em algo monstruoso e digno de punição. Mas e agora? Ainda pensamos assim? Quando uma mulher expressa sua indignação, ela á exagerada, louca ou até mesmo perigosa?
Em um mundo em que o homem sempre dominou as sociedades, a história sempre foi escrita e entendida por ele. As mulheres se tornam algo de “fora”, e como eles não entendiam como o corpo feminino funciona (tampouco tentou entender profundamente), essas coisas acontecem. Até nos dias de hoje isso acontece, quantas vezes nossa raiva é tomada como “TPM”, “são hormônios”, etc.
Eu vi um vídeo do tiktok outro dia que me fez pensar nisso. Não é sobre o feminino, mas o raciocínio é o mesmo. Durante a gravidez de uma mulher todos os médicos falavam que a criança podia sair com complicações porque o nariz era pequeno nas ultrassons. Acontece que o menino era preto, e o nariz menor era só uma característica normal. Mas por falta de representatividade e entendimento essas coisas acontecem
texto maravilhoso! amei como você usou muito da arte para ensinar história e vice-versa, super didática!